o vinho bate vermelho em minha ideia anoitecida
a madrugada flui seu sereno em telhados embriagados
palavras flutuam consignadas no silêncio da bruma
a sombra conforta o sono das cores adormecidas
e meus olhos
mentindo-se impassíveis
registram o reinado das mariposas
(Celso Mendes)
como agarrar as capas transparentes da brisa
não fora o vão?
como flutuar nas noites em descaminho
não fora a luz?
por que, afinal, transito entre a matéria e o nada
não fora o espaço?
não há paixão que sobreviva nesta calçada
onde teus pés de salto agulha feriram o concreto
e poças de lama preenchem os buracos
que escondem o sangue jorrado
dos últimos colibris de asfalto
não há mais passos em frente desta janela de bar
que não lembrem teu hálito de espuma
vazando pela veneziana
como serpente
a procura de pupilas escancaradas
não há mais amor nesta alameda em desatino
destino de alucinações desencarnadas
que não sopre o reflexo apagado de pirilampos
que já foram olhos
já não há mais a saliva espargida do teu canto
a deixar o brilho de teu rastro estéril
à porta destas casas
já acostumadas a hábitos cetônicos
hepatotóxicos
agora órfãs
de tua corrosiva doçura
etílica
nem há mais lua nesta rua
onde pisaste
e agora jazem as estrelas
um sopro
e a noite deseja
sorrateiramente
ocultar o ruído da luz com a sombra do vento
enquanto
à toa
eu brinco com palavras que apanhei à tarde
no meu quintal
se elas pingaram das árvores
ou do bico de pardais
tanto faz
se caem em minhas mãos
eu brinco
e engulo
e brindo
bem sei que o tempo teima em escorrer
mas quem sabe ainda aprendo a língua dos passarinhos
antes de conseguir voar
antes de escurecer
Alguém que percebeu que manipular palavras, rompendo suas significâncias triviais, pode revelar muitos segredos. Médico. Escrever: um hobby.
Publicações:"TRAJETÓRIAS", pela Editora Utopia, além de participação na publicações da "Segunda Antologia do Bar do Escritor" e também da terceira antologia do Bar do Escritor denominada "BDE, terceira dose".