terça-feira, 27 de abril de 2010

Epífora

Uma agulha atravessando a pele
Sorrisos costurados
Alegria lacrada na memória
Percepção rasgada, picada em pedaços
Partilha de angústias brancas
Pretéritos presentes nada perfeitos
A prisão perpétua no hipocampo
O grito

Ferroadas agendadas sistematicamente
Auto-inoculações precisas
O lento destilar da peçonha
Lucidez embargada de fel
Dias que arrastam correntes
Paredes atravessando olhos
O brilho triste da esperança vermelha
Solidão recorrente na multidão sem face
O que não quer ser choro
Epífora

A mesma velha sensação disfarçando-se por semitons
O ponteiro que insiste registrar horas de ansiedade
A esperança da manhã que foge por campos floridos
E a rotina vespertina anoitecendo mais uma vez
Mudez

(Celso Mendes)

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Poemeto Esquálido


linhas do horizonte
sucessivas e inúteis
desabam a todo instante
enquanto permaneço obtuso
rasgando a beleza da tarde
com este meu olhar estático
irredutivelmente espástico
indubitavelmente esquálido
borrado de sonhos vencidos
riscado de palavras rubras
e pele manchada de tempo
a ouvir a conversa das pedras.

(Celso Mendes)

sábado, 10 de abril de 2010

Sobre raízes e uma luz


Pessoas sem face se repetem
em casas sem cores
e ruas sem caminhos
onde procuro esperança
numa saída secreta.

E sempre a velha sensação
de que o vento tenta me engolir
e a mesma fenda insiste em se abrir sob meus pés.

Alço voo,
mas aqueles dias,
que já não mais existem,
sugam-me.

Raízes rasgam
paredes
a prender-me as asas
em muros fincados no passado.

Outra vez
meu olhar
mira a estrela,
bela,
que diz me esperar.

Ando perseguindo uma luz que não me cabe;
ela pertence aos meus sonhos.

(Celso Mendes)

sábado, 3 de abril de 2010

Rumo

À espreita do inverno,
eu conservo cores
desses olhares
como relicário.
Mesmo à porta do inferno
perseguem-me
aromas.

Não seguirei sem minhas garras
que já não arranham,
mas são minhas.
O caminhar em folhas secas
de outono
não existe. Meus passos
são os de sempre, sobre um chão
escorregadio, sabedor
de minhas fragilidades.

Em meu rastro,
veneno
e flores.

(Celso Mendes)

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Sobre Leveza e Inutilidades

Eu ando a caça de palavras aladas
que possam compor versos planadores
e recheados de desimportância.

Palavras-borboleta, conhecedoras
do voo e da metamorfose, donas
de seu destino. Não desejo aprisionar
significâncias.

Se for à noite, que sejam palavras vaga-lumes
ou de estrelas falantes. Estou cansado de opacidades,
de seriedades,
do inútil marrom que não sabe sorrir.

Feliz eu ficaria se delas nascesse
um poema com a mesma inutilidade
dos aviõezinhos de papel,
tantas vezes atirados ao vento
bem de lá da minha infância...

(Celso Mendes)

Tardes

Limbo

antes do começo
antes da ansiedade
antes do vermelho gritando nos olhos
o nada

antes do improvável
o sonho
antes da noite de chuva
o escuro e a espera
antes da meta
um abismo a saltar
antes do antes
somente eu

agora
apenas
o aguardo do novo após

somente nós

(Celso Mendes)

Fugazes


escrevo mentiras verde esmeralda
sobre verdades ocultas.
escrevo do falso brilho de estrelas cadentes
rochas riscadas nos olhos 
que passam
fugazes
vorazes
sedentas
de fogo
de cinzas
e pó.

 (Celso Mendes)

Caminhante

percorro a densidade do universo.
fluo matéria e vácuo
a cortar a escuridão
vestido de silêncio
e sombra.

os passos me pesam anos,
mas são cada vez mais velozes.

levo,
oculta,
esta luz
que arde
e pulsa
prestes a explodir
meu ventrículo esquerdo.

(Celso Mendes)

Sede

querer o risco na pele
o doce flutuando na boca
o tremor do corpo nas nuvens
as asas

e mergulhar nos sentidos
sem prévias verdades
descobrindo
no toque
os segredos

viajar levando rios e mares
luas, florestas,
cometas
ou simplesmente oceano

mas nem desejo o universo

bastavam lagos
brilhantes
como teus olhos escuros
onde eu queria nadar

(Celso Mendes)

Sinais

Entre o tridente e a cruz
os sinais
de um vento que é momento
mas instiga
da fala da rocha lambida pelo tempo
que emudece desejos
do respirar das árvores
arfantes
e da flor
rubra
que me cega
com olhos negros
e um sorriso branco.

Levito lembranças.

Fios de cabelo
invadem-me as retinas
com um cheiro suave de pecado.

Neste agora
sou só passado.

(Celso Mendes)

A Busca

Persigo fantasmas fugidios
em noites tépidas
feito diamantes
incrustados na escuridão.
E cada estrela
tenta me explicar
o porquê do brilho
e o motivo do silêncio
a banhar galáxias.

Mas já aprendi
que a mudez vem da alma,
de cada canto
que espero escutar,
de cada sombra
que quero seguir,
de cada encanto
que tento viver.

Persigo fantasmas fugidios
em noites tépidas
que são só minhas.

(Celso Mendes)

Catexia

Lembranças entoam
vazios
em um silêncio gritante
latejante
cadenciados
de um torpor
inebriante.

Agora sorriso é memória
delírio
deslize de uma trajetória
que não viu
o aviso no poste
contra minha cara
encharcada de linfa
destoada
desbotada.

À minha frente
a árvore
conformada
sorri
para o machado
manchado de seiva

mas eu tento:
debulho de mim
cada fragmento de ti
enquanto as horas consomem
minha sanidade.

(Celso Mendes)

Toque de Lembrança

o sussurro do teu silêncio me aflige

eu creio na verdade da brisa
pois não domino
a pureza da luz
ou a franqueza do escuro

a pele é testemunha da chuva
e cada lágrima da lua emociona

(Celso Mendes)

Uma Tentativa

Por que eu faria agora uma poesia?
Por que do escuro meu fruto maduro?

Escalo a magia da noite
opaco como fora um nada.
Encontro nesta madrugada
dez vidas, três horas insanas,
mil vozes em rogos de paz,
cem dardos cravados no peito.

Exploro os mistérios do vácuo
vazio como esta verdade,
cortante como esta saudade,
gritando um silêncio voraz.

E se agora eu verto este meu verde em vão
é somente por que
enrubesce-me o azul.

Mas não é sangue, é vida estanque
vermelha como meus olhos,
como meus sonhos,
como o fogo de uma espera.
Como este fado
e como este fato, que me impele ao ir.

Assim, e então, resta-me flutuar
na exata dimensão onde fadas dormem
para ver se encontro
minha fantasia.

Por que faria agora uma poesia?

(Celso Mendes)

Eternidade

o dia é hoje
passaram-se anos
mas o momento é agora

passado é rastro
perceba minhas mãos
migrando
para o seu rosto
mais uma vez

esqueça o futuro
o momento é esse
e é mágico
perceba meus olhos
migrando para os seus
mais uma vez

os pontos são os mesmos
mas não se repetem
os sorrisos são eternos
o choro mais triste
o novo não existe

estou aqui
e o momento é agora
perceba meus passos
entrelaçados aos seus

então
abrace-me
e vamos juntos

(Celso Mendes)

Eterno

Flutuo no rubro do tempo
Deslizo por ondas de luz
Navego teu corpo em tormenta
E guardo este fogo na pele

Congelo meu voo em teu colo
Seguro os ponteiros nas mãos
O toque em teus lábios, eterno
Meu corpo e teu corpo se bastam

Não rasga este meu momento
Não deixa quebrar este encanto
Não sangra meus olhos, meu bem
Não deixa este tempo escoar

Não corre levando os meus sonhos

(Celso Mendes)

Viagens


cinco pedras
em três pedaços
de chão,
vinte flores
amarelas
carregando saudade,
uma espera
em dois palmos
de luz.

vaga-lumes em círculos
e os anúncios em neon
na mesma nuvem cinza
de sempre.
infinitos caminhos
e a maldição da escolha
pairando à frente
de olhos esbugalhados.

subir em árvores
sentar em muros
não são coisas simples assim

ser passarinho
nadar no abissal
é que me levam sempre daqui.

mas o refúgio, teus olhos.
onde descanso, teu colo.

e é pra lá que retorno.

(Celso Mendes)

Chuva de Verão

Chuva riscada
Num som
Bate-telha
Pingando
Lembranças
Regando
Memórias

Chuva cantada
Num tom
De verão
De um jeito
Torrente
Escorrendo
Na pele

Chuva saudade
De corpo
Suado
De beijo
Melado
Sorriso
Paixão

Chuva sentida
Vertida
Do tempo
Lavando
E levando
O molhado
Da boca

(Celso Mendes)

Trajetórias

Eu ando meio cansado de ventos e tempestades, de angústias e de saudades, de frestas e dos abismos, de dores e de rancores, de chuvas, de vendavais. Eu ando meio alecrim.

Eu ando meio enjoado de sangue jorrado em vão, de feridas, de cicatrizes, de lânguidos corações, de mazelas e chorumelas, de cupidos, de serafins. É que eu ando meio alecrim.

Eu ando já saturado de tragédias e das novelas, de modelos, de passarelas, de choro, riso e consolo, de guerra, de crime e comédia, da fome e de quem consome. Pois ando é meio alecrim.

Eu ando leve, no vento, no intento do firmamento, na face que toco com a mão, no passo que não toca o chão, no espaço e no meu vazio, neste infinito e no azul, neste silêncio, em meu som, nesta magia, em meu tom. Em mim, apenas e enfim, o suave odor de alecrim.

Outono

insisto
numa espera
num destino
desatino
desta mente

insisto
ver a estrela
me sorrindo
se tingindo
de esperança

insisto
no trajeto
que imagino
ser a linha
que me guia

flutuo
neste sonho
meu outono
clama vida
e eu prossigo

(Celso Mendes)

Partícula

persigo uma aura

posso vê-la no voo rasante
contorcendo-se
em espirais multicoloridas

atiro-me

deixo meu flanco vulnerável a sombras
dispostas a me ferir a qualquer momento
eu sei

em queda livre
arrisco
insisto
não meço risco

preciso conseguir antes de o passado chegar

ir atrás
do eterno vermelho que me reflete
no negro dessas pupilas

a viajem dura apenas
enquanto a imagem existir

a vida é camaleão
o escuro quer minha companhia
mas eu pretendo seguir a luz

e vou tentar
enquanto eu puder ser
uma partícula em seus olhos

(Celso Mendes)

Tua Ausência

pingam
lembranças

e esta chuva seca essa minha reza
que não sei rezar

gota a gota
emudeço

inunda-me um cinza
que vaza em meus poros
que escorre nas mãos
amarga-me a boca
priva meus sentidos

e aqui permaneço
neste meu silêncio

neste meu silêncio
só cabem teus olhos

(Celso Mendes)

Reta Final

Por estas ruas
onde gruas
levantam penas
pesando centenas
de desejos
tenho perambulado.

Deste gelo que me queima,
deste fogo que me corta,
eu conheço bem.

Desta bruma que me despe,
deste sopro que me aquece,
conheço também.

Há muito
o tempo bate-me na cara
e muitos rios correm-me nas veias.

E continuo.

Na pele levo o amargo e guardo o doce,
o cheiro e as cicatrizes são memórias,
meus olhos têm o gosto da procura
e escuto aquelas folhas que se quedam
a espera do outono.

Pertenço à velha estirpe dos fadados
a deflorar a vida pelo acaso.
E dos passos encantados que voei
até o final do que já foi magia,
perdi a conta...

Agora só caminho sobre fio de lâmina quente.


(Celso Mendes)

Privação

a palavra unge a ação

hoje meu verbo tinge-se de ausência
ensurdece
ofusca meu foco
cala meus desejos
enquanto esses versos me rompem
rabiscam vazios
renegam-me risos
inventam verdades

hoje
o risco traçado
trai minha vontade

e a mensagem escorre nesta lacuna


(Celso Mendes)